Há exatos 29 anos era celebrada no Congresso Nacional a promulgação da Constituição Federal de 1988, que alteraria profundamente o direito e a política brasileiras.
Para celebrar a data o advogado Daniel Bogo, do escritório Bogo Advocacia e Consultoria, concedeu entrevista ao jornal Mensageiro da cidade de Medianeira respondendo a algumas perguntas comuns para quem quer conhecer um pouco mais da nossa lei maior e de sua importância histórica.
O que é a constituição e qual a sua importância?
Em sentido comum o termo “constituição” deriva do verbo “constituir” que significa “estabelecer”, “organizar”, “formar”. Essa origem nos auxilia a compreender o que é a Constituição de um Estado. Isso porque, a Constituição de um Estado é considerada sua lei fundamental que prevê a organização de seus elementos constitutivos essenciais.
Na perspectiva moderna e liberal, porém, a Constituição não tem caráter meramente descritivo das instituições, mas sim a pretensão de influenciar sua ordenação, mediante um ato de vontade e de criação, usualmente materializado em um documento escrito. Como se trata de instrumento amplo que caminha sob linha tênue entre o direito, a política e a sociologia há diversos sentidos de Constituição do Estado, como o sociológico, político, jurídico, material, etc.
Em linhas gerais para se compreender o significado e a importância normativa da Constituição, basta observar que os ordenamentos jurídicos (complexo de normas de um determinado país) são sistemas hierarquizados, em cujo ápice as constituição estão situadas. As leis só são válidas se estão de acordo com a Constituição quanto ao seu teor e se tiverem sido editadas em conformidade com os procedimentos prescritos constitucionalmente.
O que ela representa para o brasileiro?
Toda a Constituição é elemento fundamental para qualquer povo. É pela constituição, seja ela escrita ou baseada em costumes, que o poder dos governantes é limitado e controlado. É a Constituição que garante que todo o poder é exercido pelo povo por meio do voto, que os que estão no poder não passam de meros representantes, tanto é assim que as primeiras constituições modernas, editadas a partir das revoluções francesa e inglesa, tinham como objetivo justamente controlar o absolutismo dos monarcas pondo fim ao totalitarismo, às mordomias de poucos sustentadas pela miséria da maioria, instituindo um ideal de liberdade, igualdade e fraternidade entre todos.
Mesmo assim, por muito tempo, as constituições foram vistas não como autênticas normas jurídicas, com conteúdo obrigatório, mas, sim, como um conjunto abstrato de proclamações políticas, de modo que as verdadeiras normas que incidiam sobre as relações sociais eram as leis editadas pelos parlamentos, não as solenes e abstratas provisões contidas nos textos constitucionais.
Salvo a exceção Estadunidense, foi apenas após o advento da Segunda Guerra Mundial, diante das atrocidades do nazismo, dos campos de extermínio e das graves e intensas violações aos direitos humanos, tendo sido quase todas ordenadas ou ao menos permitidas pelas leis da época, que as Constituições e seus catálogos de princípios individuais que surgiram nesse momento passaram a ser vistas e respeitadas com autênticas normas, de cunho obrigatório, incidindo diretamente na vida social. A partir daí o povo de todo o mundo percebeu a importância e a necessidade de se respeitar a Constituição.
No caso brasileiro, o rompimento mais intenso com esse regime de desmandos ao texto da lei maior ocorreu, justamente, com a Constituição de 1988. Esta foi a nossa oitava Constituição – exceto para aqueles que entendem que as constituições do Regime Militar foram apenas emendas – e a primeira verdadeiramente reconhecida, tanto pelo povo como pelos governantes, como verdadeira norma jurídica que deve ser seguida e respeitada. Foi a primeira verdadeiramente democrática e editada após intenso movimento popular.
No período anterior as constituições brasileiras não passavam de mera formalidade, um apetrecho muito mais decorativo para passar ao mundo a imagem de democracia do que uma verdadeira constituição normativa. Exemplos disso não faltam, a Constituição de 1824 (Imperial) falava em igualdade, mas a principal instituição do país era a escravidão negra; a de 1891 (República do Café com Leite) instituíra o sufrágio universal, mas todas as eleições eram fraudadas; a de 1937 (Estado Novo de Vargas) disciplinava o processo legislativo, mas, enquanto ela vigorou, o Congresso esteve fechado e o Presidente legislava por decretos; a de 1967/69 (Ditadura Militar) garantia direitos à liberdade, à integridade física e à vida, mas as prisões ilegais, o desaparecimento forçado de pessoas e a tortura campeavam nos porões do regime militar. Os conflitos destes períodos nunca era resolvidos pela forma prevista na Constituição, quase sempre recorrendo-se às armas ou quarteladas.
Esse panorama alterou-se profundamente com a Constituição de 1988, o coronelismo e o clientelismo quem era os verdadeiros institutos ordenadores da política nacional foram substituídos pelo império da lei, os constituintes de 1988 liderados por Ulisses Guimarães imbuídos pelo espírito da mudança buscaram romper com esse sistema ao instituírem um Estado não apenas recheado de direitos sociais e individuais, de democracia e de liberdade, mas também, de combate à corrução. Para essa constatação basta relembrar trecho do discurso eloquente e histórico, proferido por Ulisses Guimarães no dia 05/10/1988 por ocasião da promulgação, proferido após mais de 20 meses de trabalho:
“A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos. Do Presidente da República ao Prefeito, do Senador ao Vereador. A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune toma nas mãos de demagogos que a pretexto de salvá-la a tiranizam. Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública”.
Em outro trecho: “A Constituição não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério. A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia (…)”.
Portanto, é de essencial importância aos brasileiros a Constituição Federal de 1988, ela é a grande responsável pelo momento político em que vivemos, pelas investigações e prisões de poderosos, cujos padrinhos políticos no passado agiam sem controle e sem pudor.
Quais as principais mudanças que a CF/88 trouxe?
Como a Constituição de 1988 foi marcada por intensa participação popular, tendo sido apresentadas 122 emendas populares, reunindo 12.227.323 assinaturas, além do grande número de pessoas que foram à Brasília no período, naturalmente ela tornou-se uma das mais extensas constituições do mundo, todos os grupos tentaram entrincheirar seus ideais na Constituição, daí a grande quantidade de mudanças que ela proporcionou.
Um dos pilares das mudanças vistas hoje no país e aclamadas por todos foi a alteração de uma das mais importantes instituições do Brasil atual: o Ministério Público. Antes da Constituição de 1988 o Ministério Público atuava de um lado como advogado do Estado e de outro como fiscal de prefeitos, governadores e do Presidente da República, sendo evidente a incompatibilidade. Foi com a Constituição de 1988 que esse paradoxo foi alterado. A função de advogar para o Estado passou a ser desempenhada por profissionais de carreiras específicas no Governo Federal pela Advocacia Geral da União (AGU) e nos Estados e Municípios pelas procuradorias.
Hoje é assegurado ao Ministério Público pela carta política de 1988: a) a vitaliciedade, consistente na garantia da perda do cargo, após dois anos de exercício, apenas por decisão judicial transitada em julgado; b) a inamovibilidade consiste na circunstância de a remoção só poder ocorrer por interesse público ou por decisão do órgão colegiado competente do próprio Ministério Público, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, assegurada ampla defesa; c) irredutibilidade de subsídios; e d) foro privativo nos tribunais. Os membros do Ministério Público desfrutam de independência no exercício de sua função, inexistindo vinculo de subordinação, apenas o respeito à Constituição e às leis. No que se refere às garantias relativas à instituição, foram asseguradas a autonomia funcional, administrativa e financeira. A autonomia financeira consiste na possibilidade de elaborar sua proposta orçamentária dentro dos limites da Lei de Diretrizes Orçamentárias. Pode o Ministério Público propor ao Poder Legislativo a criação e a extinção de seus cargos, serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira. Cabe à lei dispor sobre sua organização e funcionamento. Desfruta de autonomia funcional e administrativa, “com possibilidade de prover diretamente seus cargos”. Essas alterações conferiram possibilidade prática ao Ministério Público de investigar e reprimir os poderosos, não apenas na esfera criminal, como também defendendo os direitos dos consumidores, defendendo o meio ambiente, etc.
Pode-se citar também, como avanço, a previsão da fiscalização pelo Poder Legislativo com auxílio dos Tribunais de Contas, a previsão expressa e direta de diversas ações constitucionais para assegurar e implementar direitos individuais ou coletivos, a equiparação entre o trabalhador rural e urbano, muitos são os exemplos.
Apesar dos 29 anos de vigência, ela ainda não está totalmente efetivada?
A Constituição de 1988 se classifica como “programática”, isto é, ela instituiu programas a serem implementados ao longo do tempo, importantes institutos foram implementados e muitos outros ainda dependem leis para sua implementação. Daí a necessidade de o povo conhecer a Constituição e exigir de seus representantes a efetividade da Constituição. Ou seja, a chave para a efetividade das previsões constitucionais é a democracia, o voto consciente e a participação popular. Como, por exemplo, a pressão das manifestações populares de 2013 e a edição da Lei das Organizações Criminosas (Lei nº 12.850/2013) que institui a “colaboração premiada” e permitiu reprimir crimes de colarinho branco como jamais se imaginou que fosse possível no Brasil.
É fato que ainda persistir uma realidade muito diferente das promessas constitucionais, sendo recorrente o exemplo da previsão como direito social de um salário mínimo capaz de atender necessidades vitais básicas da pessoa e de sua família, dentre muito outros exemplos. O próprio guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal, já declarou a existência de um “Estado de Coisas Inconstitucional” ao julgar a ADPF nº 347/DF no que toca ao sistema carcerário brasileiro. Mesmo assim, esta é a Constituição mais longa de nossa história – com exceção da Constituição Imperial de 1824 – e, certamente, a que mais foi cumprida. Cabe ao povo exigir mais.